Perfil/Entrevista - Francis Musa Boakari

quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Ele caminha apressado pelos corredores do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal do Piauí. Até passa despercebido: é mais um professor da instituição, mais um docente carregando pastas abarrotadas de trabalhos acadêmicos. Em Teresina ninguém se impressiona com a pele negra: ele anda por aí e ninguém que passe por ele desconfia do sangue africano que se não se deixa descobrir facilmente. O sotaque é traidor, porém: há algo de Serra Leoa, algo que lembra diamantes e granadas. Mas Francis Musa Boakari não gosta desses estigmas. Para ele, a imagem da África – ou a imagem que construíram para a África – foi historicamente deturpada pelos interesses dos grandes grupos econômicos.


Um ponto inquietante no histórico do sociólogo: na programação do I Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afrobrasileiras e Africanas, promovido pela Universidade Estadual do Piauí, chamaram-no de “príncipe de Serra Leoa”. Ele diz que não, e depois que não gosta de falar sobre isso. É resistente: permaneceu o mistério.

Príncipe ou não, Francis Boakari possui uma formação acadêmica invejável: graduação em Ciências Sociais pela Universidade de Iowa (Estados Unidos), graduação em Estudo Religioso pela Universidade de Ibadan (EUA), mestrado em Psicologia da Educação e doutorado em Sociologia da Educação por Iowa, além de pós-doutorado na área de Educação pela Diversidade, pela Universidade Auburn.

Ainda adolescente saiu de Serra Leoa e foi aos Estados Unidos. O motivo, diz ele, foi unicamente a necessidade de concluir o ensino superior. “Naquele tempo nós não tínhamos muitas universidades, e eu ganhei uma bolsa para estudar no exterior. Mas no tempo que eu era jovem, em Serra Leoa, as condições eram as melhores possíveis. Hoje, as coisas mudaram porque o mundo mudou.” Após concluir o doutorado nos EUA, veio a Teresina, em 1983. Em 2002, voltou aos Estados Unidos e lecionou na University of the Incarnate Word durante os seis anos seguintes. Voltou para cá em 2008, e desde então é professor do Departamento de Fundamentos da Educação (DEFE).

Os trabalhos de extensão que o professor desenvolve agora destinam-se à reconstrução de Serra Leoa após os dez anos de guerra civil (1991 – 2001) – a “Guerra dos Diamantes”, como ele prefere chamar. Para ele, o conflito foi o grande responsável pelos problemas em seu país natal. Serra Leoa é o país com o terceiro menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, e ficou conhecido pela violência, pela instabilidade política, pela miséria e pela proliferação de doenças. Mesmo consciente dessas mazelas, o professor Francis Musa Boakari acredita que a visão que as pessoas têm de Serra Leoa foi gerada pelos meios de comunicação de massa, que mostram apenas os pontos fracos dos países mais pobres. O Brasil também é vítima dessa efeito; dentro do Brasil, o Piauí sofre com a discriminação regional. Foi essa a idéia que defendeu durante entrevista concedida ao Apolo News, durante a qual manteve um tom convicto e didático.


Por que o senhor saiu de Serra Leoa?
Saí porque precisava terminar o curso superior, só isso. Muita gente pergunta por que a pessoa sai da África. Ora, a migração internacional é um fenômeno global, que não começou hoje e que não vai terminar amanhã. E se você pergunta “por que”, são questões políticas, questões sociais, questões econômicas, questões culturais... E também aquela coisa de “ver o que tem do outro lado do oceano”.

Como o senhor interpreta a atual situação na África e, mais especificamente, em Serra Leoa?
É uma situação complicada, porque a tendência é que tudo que é africano seja negativizado. Pobreza você tem no mundo inteiro, mas é da pobreza da África que todo mundo fala. As doenças existem em todos os países: nos Estados Unidos, eles têm as mesmas doenças que nós temos no interior do Piauí. A grande diferença é que os países ricos conseguem esconder as suas mazelas, porque são eles que têm acesso á mídia. Nós, dos países pobres, não conseguimos esconder nossos problemas nem disseminar os nossos pontos positivos. Parece que a África só aparece no noticiário quando tem coisa negativa. Coisa positiva, os EUA aparecem. Essa tendência não é apenas internacional, mas nacional também. É uma tendência regional. Por exemplo, no Nordeste. Quando nós aparecemos no Jornal Nacional? Quando tem desgraça o Nordeste aparece, mas as coisas boas que nós conseguimos, não. Então, não é uma questão de foco apenas na relação da África com os outros países, mas também dentro dos países. Piauí... Qual a cidade que aparece no noticiário? Teresina. E as outras cidades? Não acontece nada nelas?

O senhor é professor de Sociologia da Educação. Como a produção científica e o ensino podem mudar a realidade em países pobres?
Antigamente eu pensava que a educação básica seria a chave para mudar as condições. Mas hoje eu percebo que a questão não é só a educação, mas o tipo de educação que se recebe. Não é só ir para a universidade, é o tipo de universidade, é o tipo de curso, é o tipo de currículo. A nossa educação cria um individualismo muito grande. Você se qualifica não para beneficiar a comunidade, mas para se beneficiar. Antes, na África, nós éramos uma cultura muito coletiva. Eu estou na escola, eu estou aqui, eu estou nos Estados Unidos, mas eu tenho uma comunidade, tenho uma aldeia, e tudo o que faço volta para lá. Essa prática não é tão valorizada hoje como há vinte, trinta anos atrás. O que eu posso contribuir, hoje, consiste basicamente em projetos individuais que eu tenho na minha aldeia.

Como funcionam esses projetos?
Meus projetos são muito individuais. Eu estou pagando a formação de pessoas fazendo ensino fundamental, tenho duas pessoas no superior, mais três no curso de formação pedagógica. Claro, é muito dinheiro. Mas quando você olhar os resultados daqui a cinco, dez anos, vai ver que está valendo a pena fazer o sacrifício.

Quais são os pontos fortes da cultura da África, professor?
Uma consideração: na África, temos dois âmbitos de cultura. Você tem a cultura mais coletivista das aldeias do interior, e a cultura das cidades, mais próxima do capitalismo, do mundo ocidental. Na periferia das cidades, podem acontecer de existirem meios que são réplicas do ambiente rural. Encontramos esses dois tipos de cultura em qualquer país africano. O africano tem que se adaptar às duas. Qual a melhor? Não sei. Eu já achei que a nossa cultura ocidental era a melhor. Hoje, não tenho certeza. Porque na cidade, eu estou andando, estou com medo; estou dirigindo um carro e paro no sinal, estou com medo. Na minha aldeia, eu levanto duas, três horas da manhã e caminho para todo o canto. Um carro é progresso? Andar por aí duas, três horas da manhã, é progresso? Não sei.

Qual é a sua aldeia?
Garamá... Fui lá ano passado, e devo ir em 2010. Estou contando os dias, viu?
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Francis Musa Boakari conduzirá a conferência "Diáspora Africana nas Américas", no dia 19 de novembro, no I Encontro de Literaturas, Histórias e Culturas Afrobrasileiras e Africanas. Saiba mais sobre o evento. 

Texto, vídeo e entrevista: Shaianna Araújo
(shaiannaaraujo@hotmail.com) 

1 comentários:

Yatta Boakari disse...

Muito boa a entrevista!Esclareceu vários estigmas que existem.